Jochen Hellmann: ‘Depois de quase cinco anos, me sinto um pouco brasileiro’

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Sinais de que uma mudança está acontecendo estão por toda a parte. As estantes da sala, dentro de um casarão antigo no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, já quase não têm mais livros. A mesa também está praticamente vazia, com apenas alguns papéis e um monitor preto, onde Jochen Hellmann, diretor do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) no Brasil e do Centro Alemão de Ciência e Inovação (DWIH) São Paulo, digita algumas palavras.

Foi dessa sala (e com incontáveis voos na ponte aérea Rio-São Paulo) que ele comandou as duas instituições entre dezembro de 2019 a junho de 2024, período que se encerra com a aposentadoria. E com um misto de sentimentos. “Depois de quase 40 anos na área de internacionalização do ensino superior, em diferentes situações, é difícil parar de um dia para o outro, mas também vejo as vantagens da liberdade”, afirma. Ao mesmo tempo, admite que vai sentir falta dos colegas brasileiros.

E é também nesta sala, dentro da sede do DAAD no Brasil, que Hellmann concedeu uma entrevista ao DWIH São Paulo no começo de julho, durante a qual fez um balanço de sua gestão, analisou o cenário da educação superior e da pesquisa no Brasil e revelou que, depois de quase cinco anos, já se considera até um pouco brasileiro. “Acho que minha afinidade pode ser medida também no futebol: quando o Brasil joga, estou com os brasileiros”, diz, preferindo não comentar um traumático jogo (para um dos países) da Copa do Mundo de 2014.

Leia abaixo a entrevista:

Que prioridades você estabeleceu quando assumiu o DAAD e o DWIH, e quais delas você conseguiu cumprir?

Tinha, e ainda tenho, vários objetivos. Construir um equilíbrio, uma reciprocidade dos contatos acadêmicos entre Alemanha e Brasil era o principal. Os pesquisadores brasileiros conhecem bem a situação na Alemanha, mas, infelizmente, os cientistas alemães sabem pouco em relação às oportunidades que o Brasil oferece. Isso melhorou um pouco nos últimos anos, nós do DAAD e do DWIH demos nossa pequena contribuição, mas ainda há muito a se fazer. Melhorou porque o interesse pelo Brasil, como país onde está a maior parte da Amazônia, suscitou mais interesse da Europa, assim como as questões de energia renovável, sustentabilidade em geral e a proteção da biosfera.

O segundo objetivo era fazer as pessoas viajarem – os brasileiros para Alemanha, os alemães para o Brasil, para a América Latina. Essa é nossa missão, a justificativa para nossa existência: mobilidade acadêmica – e isso significa mobilidade física, que não pode ser substituída pelas comunicações virtuais. A pandemia foi difícil para nós, mas, desde o primeiro dia, meu time e eu procuramos possibilidades de fazer a mobilidade acontecer, apesar dos problemas.

O terceiro foi fazer a promoção da língua alemã no Brasil. Se queremos que o alemão seja falado aqui no Brasil, não podemos lutar contra o inglês, que é muito importante no mundo acadêmico. No que eu quis e sigo querendo insistir é na ideia de que, normalmente, uma cientista ou um cientista com uma formação sólida sabe seu idioma materno, tem o inglês como língua do mundo acadêmico e mais um terceiro idioma, o do coração, que se pode escolher. Essa língua do coração pode ser o alemão. Temos muitas razões para isso: a presença de muitas empresas alemãs no Brasil, assim como a importância do idioma para contatos com a Europa, já que é o idioma mais falado na União Europeia.

E quais objetivos você acredita que não conseguiu realizar? Quais foram os desafios?

Tivemos alguns obstáculos. Um deles foi a pandemia, que durante anos nos impediu de organizar nossos intercâmbios. Outro foi o período do governo Bolsonaro, durante o qual as universidades e instituições de fomento como Capes e CNPq tiveram que lidar com problemas de orçamento. Além disso, é necessário que haja mais conhecimento na Alemanha em relação à importância do Brasil para o desenvolvimento da cooperação científica.

Gostaria de ter implementado novos programas de intercâmbio, mas o orçamento também não permitiu. Um exemplo seria um programa como o Ciência sem Fronteiras, mas não foi possível, não só do lado brasileiro, mas também do alemão.

O segundo ponto que gostaria de ter desenvolvido mais é a integração entre as atividades do DWIH e empresas brasileiras que realizam pesquisas. Tivemos sucesso com algumas, mas não tanto quanto deveria ser. Acho que meus sucessores aqui têm que fazer um esforço para fortalecer os laços com as empresas no Brasil. Certamente há espaço para melhorar.

Foto: Iris Maurer

Você acompanhou de perto a educação superior e a pesquisa no Brasil. Depois de quase cinco anos aqui, quais você julga serem os desafios que o Brasil tem que resolver para ser uma potência nesse aspecto?

Não é meu papel dar conselhos ao governo brasileiro, mas acho que há duas coisas importantes para melhorar a posição do Brasil na pesquisa e no mundo acadêmico internacionais: educação básica e internacionalização.

Primeiramente, embora meu trabalho esteja focado no ensino superior, tenho que reconhecer que, sim, é necessário um bom sistema de ensino básico. Além da sua natureza, as pessoas são a maior riqueza do Brasil. São jovens que serão, alguns deles, pesquisadoras e pesquisadores. Por isso, acho que o Estado precisa investir muito na educação de crianças e jovens.

Agora, falando do ensino superior, acho que as universidades no Brasil ainda não estão bem preparadas para receber e acolher estudantes da Europa ou de outros países. Os poucos estudantes internacionais no Brasil normalmente vêm de países vizinhos. Isso não é ruim, mas as universidades têm que fazer um esforço para atrair também estudantes da Europa. Na minha opinião, elas poderiam fazer mais programas em inglês, sobretudo para os que ainda não sabem bem o português, oferecendo paralelamente cursos da língua. Essa é uma estratégia que a Alemanha tem há mais de 20 anos.

Também falta um ambiente multilinguístico no Brasil. O jovem brasileiro tem pouco contato com pessoas que não falam português. Já um alemão tem contato com pessoas de diferentes idiomas maternos. Não é algo que possa ser criado artificialmente – o Brasil é um país grande, ao contrário da Alemanha, onde em uma hora de trem se chega a uma fronteira. Por isso, aqui, acho importante que se criem espaços internacionais multilíngues nas universidades, e isso só pode ser feito acolhendo professores e estudantes estrangeiros. Na Europa chamamos isso de internationalization at home.

Qual o papel do DAAD e do DWIH nesse cenário?

Uma coisa importante que o DAAD faz é oferecer bolsas. O Hochschulwinterkurs (Curso de Inverno de Língua e Cultura Alemãs) é um bom exemplo, já que ajuda jovens brasileiros a terem essa experiência multilíngue na Alemanha. Porém, o programa só atinge uma minoria.

Mas o DAAD pode auxiliar na internationalization at home, com, por exemplo, nossa rede de professores visitantes de língua alemã, que chamamos de leitores. Tenho a felicidade de poder dizer que dois novos leitorados foram criados no meu tempo aqui, em Brasília e em Salvador, dentro da nossa estratégia de promover a cooperação acadêmica Brasil – Alemanha fora das regiões Sul e Sudeste, onde ela já é tradicionalmente forte, e estamos tramitando um terceiro. Ter mais leitores do DAAD nas universidades federais do Brasil é uma grande contribuição. Isso também nos oferece uma plataforma para que instituições e universidades da Alemanha apresentem ao Brasil seus programas.

Já a ideia de vitrine talvez seja a que melhor explique a existência do DWIH: uma vitrine da pesquisa da Alemanha, já que é muito fácil conseguir informação sobre as instituições que estão sob o teto do DWIH. As pessoas ligam, perguntam, mas nós também podemos estimular os colegas alemães a trabalharem com universidades ou empresas brasileiras. Com nossos esforços de marketing, conseguimos atingir um público no Brasil que, se as instituições que têm representação no Centro estivessem sozinhas, não conseguiriam.

Essa concentração de quase 30 instituições no DWIH, essa sinergia, é algo proveitoso também para o Brasil. Muitas das universidades representadas têm interesse em toda a América Latina, mas, como o DWIH está aqui, a antena delas está voltada para São Paulo, não para Buenos Aires ou para a Cidade do México. Isso é uma vantagem na promoção do Brasil, porque na Europa nem todos sabem sobre a importância relativa do país na região.

Levando em conta os quase cinco anos que você comandou DAAD e DWIH no Brasil, onde vê as duas instituições nos próximos cinco?

Acho que, certamente, vamos ter mais impacto na opinião pública no Brasil. Também acredito que vamos ter mais mobilidade, pois os problemas da pandemia deverão ser superados em breve.

É muito importante chegarmos outra vez aos números de intercâmbio de antes da pandemia. As bolsas de doutorado são muito importantes, já que os bolsistas que vão à Alemanha são a próxima geração de professores nas boas universidades do Brasil. Como eles terão o alemão como idioma do coração, estarão sempre ligados ao país. Espero que tenhamos mais bolsas e mais doutorandos lá nos próximos cinco anos.

Também acho que teremos uma rede de leitores maior que a atual. Tomara que seja possível e que as pessoas que venham a me suceder tenham a verba: sem dinheiro, mesmo com a maior vontade do mundo, não dá para fazer muito.

Depois desse período aqui, como você definiria sua relação com o Brasil e com os brasileiros?

Criei um laço. A primeira vez em que pisei em solo brasileiro foi há 44 anos, em 1980. Era mochileiro, jovem, de espírito aventureiro, com muitas ilusões e pouca cautela, pouco dinheiro e pouco conhecimento de idioma, sabendo falar alguma coisa em espanhol. Mas senti imediatamente que o Brasil era para mim.

Sempre tive o Brasil como um país onde as pessoas são muito especiais, muito cordiais. Antes de me mudar para cá, devo ter vindo uma dúzia de vezes e, toda vez, eu e minha esposa, que é peruana, fazíamos uma escala aqui quando íamos ao Peru e ficávamos uma semana em Curitiba, onde tenho amigos, e outra na praia. Nesse período, mantive um nível mínimo de português, mesmo que contaminado pelo espanhol. Cheguei aqui há quase cinco anos falando portunhol, mas hoje me expresso melhor em português.

E por que conto isso? Para mostrar que meus laços com o Brasil se fortaleceram muito. Quando você fica quase cinco anos no país, começa a ver o mundo um pouco com a perspectiva de uma pessoa do lugar onde você está. Claro que na minha bagagem estará sempre a cultura da minha origem, mas, a cada ano que passa, vejo o mundo um pouco mais como um brasileiro.

Um exemplo é quando chego, hoje em dia, ao aeroporto de Frankfurt. Tenho um sentimento esquisito: não me sinto estrangeiro em meu país, claro, mas percebo coisas que o brasileiro consideraria estranhas, como não haver fila preferencial para idosos e gestantes no controle de passaportes. Ao mesmo tempo, também tenho olhos mais atentos para as coisas que funcionam bem lá, porque há coisas que um alemão toma como algo normal e que são diferentes no Brasil, como caminhar à noite em um parque sem se preocupar muito com a segurança.

A sede do DAAD no Brasil é no Rio, lugar que gosto muito pela alegria e pelo clima quase sempre bonito. Gosto da cordialidade, de conhecer pessoas na fila do supermercado. No começo, até achava meio desconcertante, mas hoje gosto, porque me dá a possibilidade de conhecer outra pessoa, que começa a falar da vida, dos filhos…

O país me deu uma perspectiva adicional que tem enriquecido muito minha vida. Sou muito grato por isso e me sinto um pouco brasileiro depois desses cinco anos. Inclusive, acho que minha afinidade pode ser medida também no futebol: quando o Brasil joga, estou com os brasileiros!

Quais são seus planos para a aposentadoria?

Minha esposa e eu estamos procurando um apartamento aqui no Rio. A ideia é passar uma parte do ano aqui e parte na Alemanha e na França e em outros países, para poder curtir essa liberdade que tenho agora com a aposentadoria. Logicamente, nunca mais vou passar o inverno em Hamburgo [risos], mas junho e julho, no verão de lá, sim, porque temos família, amigos e não queremos cortar os laços completamente.

Mas tenho que ser sincero. Gosto do meu trabalho também, e tenho problemas em deixá-lo. Depois de 40 anos na área de internacionalização do ensino superior, em diferentes situações, é difícil parar de um dia para o outro, mas também vejo as vantagens da liberdade.

De qualquer forma, nunca vou esquecer os times em São Paulo e no Rio, com os quais tive a felicidade e a honra de trabalhar. Vou ter muita saudade desse contato com os colegas, que são todas e todos muito especiais. Vou sentir falta dessa cooperação e dessa família que tenho aqui no DAAD Brasil e no DWIH São Paulo.

Texto: Rafael Targino